Os direitos do consumidor na pandemia
A pandemia do coronavírus não trouxe apenas mudanças nas áreas da saúde e da economia. Para acompanhar as movimentações e necessidades sociais, o direito também precisou se adaptar. Ao longo do quase um ano e meio desde que o vírus mudou a rotina do país, diversas medidas provisórias foram elaboradas contemplando o Direito do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor constitui um diploma jurídico de ordem pública e interesse social, pois regulamenta um direito fundamental estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Desse modo, tem como objetivo proteger a parte vulnerável e hipossuficiente da relação de consumo, que é o consumidor.
O que muita gente não sabe é que o Código de Defesa do Consumidor prevê a modificação ou revisão de cláusulas contratuais ante situações excepcionais, como de força maior, que se tornem excessivamente onerosas (artigo 6º, V). Caso não haja a possibilidade de cumprir com o contratado, como no caso da pandemia, tanto fornecedor, prestador de serviços e o consumidor devem repactuar o contratado, adiando, quando possível, o evento, como casamentos, cursos, palestras, aulas, buscando a melhor situação para ambos.
Logo, o consumidor não é obrigado a aceitar as modificações impostas pelo prestador de serviço, sendo seu direito suspender ou rescindir (cancelar) o contrato, conforme o caso. Deixando claro que cada modelo de negócio possui regras peculiares a serem aplicadas.
Devemos levar em consideração também que o consumidor não pode e não deve colocar a sua vida e saúde em risco somente para cumprir um contrato, como por exemplo viajar, especialmente em época como esta de uma grave pandemia, em que não se sabe se pode se infectar ou infectar terceiros.
O presente artigo objetiva esclarecer dúvidas pontuais sobre os direitos do consumidor em algumas situações que serão exemplificadas; ou seja, serviços de consumo alterados em razão da pandemia de Covid-19.
Iniciamos no setor de consumo digital, no qual o distanciamento social fez com que a aquisição de produto mais diversos, consultas médicas e com uma série de outros profissionais, serviços de educação, encontros e congressos profissionais, entre outros, passassem a ser feitos pela internet.
Os hábitos de consumo online mudaram consideravelmente com a pandemia; a maioria das compras não são mais feitas de forma presencial, direto nos estabelecimentos comerciais. Logo, o consumidor pode recorrer ao direito de arrependimento.
A lei assegura o “direito do arrependimento” sempre que você adquirir qualquer produto fora de um estabelecimento comercial, seja por internet, telefone ou catálogo. Assim que o produto for entregue, você tem até sete dias para devolver e receber integralmente o valor pago, inclusive o valor do frete.
Tal instituto está previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990):
“Artigo 49 — O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”.
Outra coisa importante que muitos consumidores não sabem é que houve alteração na aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) durante o período da pandemia em compras pelo sistema delivery. A Lei 14.010/2020 suspende a aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, referente ao direito do arrependido, na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo instantâneo e de medicamentos. A alteração estabelecida por essa lei é válida até a data de 30 de outubro de 2020.
Cabe ressaltar que, para os demais produtos adquiridos fora de estabelecimento comercial, não incidem as disposições dessa lei.
Outro ponto importante e polêmico refere-se ao cancelamento de eventos: houve a sanção da Lei 14.046/2020 e a modificação das regras foi bem grande, conflitando, inclusive, com os direitos dos consumidores e provocando desequilíbrio nas relações de consumo. De acordo com o texto da nova lei,
“Artigo 2º — Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, (…) o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I — a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou
II — a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas”.
Logo, o reembolso somente ocorrerá se o fornecedor ou prestador do serviço não incorrer em nenhuma das duas opções acima (artigo 2º, §6º). Então, a Lei nº 14.046/20 coloca a escolha como direito do fornecedor e não do consumidor, ao contrário do que determina a legislação consumerista (artigo 18 do CDC).
Opção I: A remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados pode ser feita no prazo de 18 meses, após o estado de calamidade pública (com duração prevista até 31/12/2020, conforme Decreto Legislativo 06/20). Ainda, serão observados os valores e condições dos serviços incialmente ajustados.
Quanto aos profissionais já contratados — artistas, palestrantes, espetáculos musicais/teatrais, rodeios, bem como aqueles contratados para a promoção do evento — não serão obrigados a reembolsar imediatamente os valores dos cachês, desde que o evento seja remarcado dentro do período de 12 meses após o fim do estado de calamidade pública (artigo 4º), que ocorreu em 31 de dezembro de 2020.
Opção II: Do crédito a ser disponibilizado ao consumidor será descontado o valor correspondente aos serviços de agenciamento de intermediação já prestados (exemplo: taxa de conveniência e/ou de entrega). O prazo para que o consumidor usufrua do crédito é de até 12 meses, a contar da data de encerramento do estado de calamidade pública.
Além disso, importante se atentar que a Lei nº 14.046/20 se aplica aos seguintes serviços: setor do turismo (meios de hospedagem — hotéis, albergues, pousadas, aluguéis de temporada); agências de turismo; empresas de transporte turístico; organizadoras de eventos; parques temáticos e acampamentos (artigo 3º, inciso I); setor da cultura (cinemas, teatros, plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet); artistas (cantores, atores, apresentadores e outros); e demais contratados pelos eventos (artigo 3º, inciso II).
Por fim, todos sabemos que a pandemia do coronavírus afetou a todos de formas distintas. Assim, a conciliação e o bom senso continuam sendo a melhor forma de resolução de conflitos, principalmente no cenário atual em que situações inesperadas surgem diariamente, exigindo de todos mais compreensão e diálogo. É importante recordar que tanto as empresas quanto os consumidores estão sofrendo ou sofrerão os impactos dessa crise socioeconômica
E se acontecer da empresa/contratado não quiser ou se recusar a renegociar? Como o momento é de excepcionalidade, e se preza pela boa-fé contratual, o consumidor deve efetuar uma reclamação nos serviços de atendimento ao consumidor da empresa (SAC) e, caso não obtenha resposta, deve buscar os órgãos de defesa do consumidor ou então entrar com uma ação judicial contra a empresa prestadora de serviços ou fornecedor, para que seja garantido seu direito.
Fonte: Conjur