Em fase final de tramitação, projeto de lei da meia-entrada agrada, mas pode causar polêmica
[Por O Globo, 05/12/2012]
Apontada como a grande culpada pelo encarecimento de shows, espetáculos teatrais e ingressos de cinema pelo Brasil afora, a meia-entrada pode ter suas regras definidas pela primeira vez em âmbito nacional nos próximos meses. Na última semana, chegou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados — a última instância de tramitação da casa — o projeto de lei que nasceu no Senado em 2007 e que pretende regulamentar de uma vez por todas o desconto de 50% dado a idosos e estudantes em eventos culturais e esportivos. Devido ao consenso entre os envolvidos, parlamentares dizem que a lei nacional será sancionada já no primeiro semestre de 2013.
Pela primeira vez, produtores culturais, entidades estudantis e parlamentares se dizem satisfeitos com o texto em análise e mobilizados para que o projeto de lei 4.571, dos então senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Flavio Arns (PSDB-PR), seja aprovado o quanto antes. O motivo é claro: ao fixar uma cota de pelo menos 40% dos ingressos para atender a idosos e estudantes, a futura lei daria aos produtores a possibilidade de saber exatamente o total de meias-entradas à venda. Aos beneficiados, a certeza de que seu direito de desconto seria respeitado. E há quem aposte que, com a regulamentação, haverá queda de preços no setor.
— Foi muito difícil convencer os políticos e as entidades estudantis de que se deve regulamentar a meia-entrada, uma atitude que não é lá muito popular. Na proposta inicial, pedíamos que o desconto fosse restrito a até 30% da capacidade dos espaços, mas, após um acordo com a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e outras entidades estudantis, aceitamos a contraproposta de 40% — conta Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), que participou da elaboração do projeto.
— A criação de uma cota é um passo na direção certa — comemora Leo Ganem, presidente da produtora GEO Eventos, responsável pela edição brasileira do festival Lollapalooza. — A lei estabelece um limite que nos permite calcular os valores dos ingressos em cima de uma base mais sólida. Hoje, qualquer espetáculo de grande porte pode ter de 60% a 95% de ingressos vendidos com meia-entrada, e, como esse espectro é bem amplo, a gente fica perdido na hora de definir o preço. Chuta os valores para cima e acaba punindo quem não tem o benefício.
Em 11 anos, o dobro de carteirinhas
Segundo Ganem, há hoje duas associações de produtores de shows preocupadas com a discussão. A primeira, criada há mais de 15 anos, reúne representantes de empresas como GEO, XYZ, Artplan e T4F. A segunda é composta por empresas que vendem ingressos. Ambas acompanham de perto o andamento da lei.
Além da cota de 40%, o projeto, que tramita em caráter de urgência, traz outras duas novidades. Devolve às entidades estudantis — UNE, Ubes e DCEs, entre outras — a exclusividade na emissão das carteirinhas e estabelece que elas sejam fabricadas pela Casa da Moeda, com uma tecnologia que visa a reduzir falsificações.
Daniel Iliescu, presidente da UNE, reconhece que a cota consiste numa restrição ao que existe hoje em dia na maior parte do país, mas conta que a entidade resolveu aceitá-la para que o direito de desconto volte a ser aplicado de forma real — e não mais com a chamada falsa meia-entrada (quando o mercado dobra o preço dos ingressos para arrecadar o valor real com a venda de meias-entradas).
— Nas reuniões que fizemos com a indústria, eles nos mostraram que até 2001, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso tirou das entidades estudantis a exclusividade na emissão das carteirinhas, o uso da meia-entrada rondava 28% das bilheterias. Depois disso, passou para 78%. Os 40% fixados pelo projeto devem dar conta da necessidade real. Então decidimos reefetivar primeiro o desconto, que hoje não funciona de verdade, para depois, se necessário, lutar por um aumento dessa porcentagem.
Queda de preços à vista?
O objetivo da UNE é conseguir baratear o preço dos ingressos. Alguns produtores culturais, que nos últimos meses penaram para lotar espetáculos por conta dos ingressos caros, já concordam que é necessário rever valores.
— Hoje, estipulo o preço de maneira simples: calculo de quanto vou precisar e multiplico por dois. Com a cota (de 40% para meia-entrada), vou multiplicar por 1,4, ou algo do tipo — antecipa Ganem. — Para os produtores, é interessante ter preço menor. As pessoas não estão mais pagando por ingressos caros. Vide Lady Gaga e Madonna (que tiveram ingressos encalhados).
— Ninguém quer dar um tiro no pé — ecoa Barata. — Temos que baixar os preços para renovar as plateias. Tenho certeza de que a regulamentação vai se refletir nos valores dos ingressos.
No setor cinematográfico, o projeto de lei também encontra apoio.
— Ainda que não atenda totalmente às demandas da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), o projeto ao menos oferece soluções para questões imediatas, como a regularização na emissão das carteiras — destaca Paulo Celso Lui, presidente da federação. — O projeto é positivo. Tende a colocar ordem no atual panorama.
Devido ao acordo entre os envolvidos, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), presidente da Frente Parlamentar de Cultura, acredita que a lei nacional estará pronta já em meados do ano que vem:
— O projeto ainda retornará ao Senado porque foi modificado na Câmara. Mas, como há consenso e as mudanças foram pequenas, passará rápido tanto na CCJ quanto no Senado. A lei deve ser sancionada no primeiro semestre de 2013.
No que diz respeito à fiscalização do benefício, o projeto entra em terreno arenoso. Estabelece que a tarefa “caberá aos órgãos públicos competentes federais, estaduais e municipais” e que eles poderão aplicar sanções administrativas e penais.
— O Estatuto da Juventude já obriga bilheterias a mostrar quantas meias-entradas foram postas à venda e quantas foram vendidas. Queremos levar isso para à nova lei nacional — diz Iliescu, da UNE.
Uma vez aprovada, a lei terá valor em todo o Brasil, até onde já há regulamentações locais sobre o assunto, caso de Rio, São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza. Diante da convivência de duas leis, especialistas preveem um acalorado debate. Caberá ao Judiciário decidir qual lei prevalecerá.
Coexistência de leis pode gerar polêmica
Juristas que acompanham o debate sobre o projeto de lei 4.571 alertam para um futuro de polêmica no que diz respeito à meia-entrada. Em estados e municípios que já têm regulamentação, o Judiciário deverá dizer qual lei prevalecerá: a local ou a federal.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, todos os estudantes têm direito ao benefício, independentemente do número de ingressos postos à venda. Se o projeto for aprovado como está, a lei nacional restringirá esse direito a 40% das entradas. Logo, seria possível que um estudante quisesse, mas não conseguisse efetivar o direito que lhe é garantido no âmbito estadual.
Segundo a consultora jurídica do Procon-RJ Maria Rachel Coelho, a coexistência de leis deve gerar uma “confusão jurídica nacional”, abrindo precedentes para uma possível disputa de liminares. No Rio, portanto, a lei nacional favoreceria os produtores. E a lei estadual, os idosos e estudantes.
— Na questão da meia-entrada, a competência para legislar é concorrente, ou seja, cabe à União a edição de normas gerais e aos estados e ao Distrito Federal a elaboração de normas suplementares — explica a consultora jurídica. — A lei federal teria valor em todo o território, mas há uma jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) que data de 2006 e que entende como legítimo e constitucional o benefício da meia-entrada concedido por leis locais.
Para Guilherme Peres, subprocurador-geral da OAB-RJ, até que o Judiciário decida qual lei é efetiva num local onde duas coexistam, é possível que haja um “momento de incerteza”.
— No conflito entre duas leis relativas a um mesmo assunto, deve prevalecer a divisão de competências legislativas estabelecida pela Constituição em seu artigo 24. No caso da meia-entrada, eu entendo que deveria prevalecer no Rio a lei estadual, por ser mais benéfica aos estudantes. Mas só o Judiciário poderá dirimir sobre isso.
Leo Ganem, da GEO Eventos, teme que essa incerteza possa jogar por terra o projeto costurado nos últimos anos.
— Se ocorrer esse tipo de conflito legislativo, nós (produtores de shows) teremos que atuar em outras esferas para equalizar a lei. Nos preocupam os fatos que podem vir a tornar essa lei inócua.
Caso a futura lei nacional não seja aplicada no Rio, Roberto Medina, do Rock in Rio, já estuda uma solução para coibir a venda excessiva de meias-entradas.
— Em 2011, pedimos que os compradores de meia-entrada nos dessem cópias das carteiras — conta Medina, que apoia o projeto de lei 4.571.
Em 2013, o festival cruzará dados dos compradores com informações fornecidas pelas entidades estudantis.
— Uma equipe vai checar os dados — explica Juliana Ribeiro, gerente de ticketing do festival. — Se houver irregularidade, poderemos cancelar os ingressos, conforme estabelecido nos termos de serviço do nosso sistema de compras.