Quando os grandes eventos são um mau negócio
[Por Revista VEJA, 06/07/2013]
Desde o anúncio da conquista da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, o Brasil experimenta um inédito ciclo virtuoso no turismo de eventos, com destaque para o Rio de Janeiro, que, duas semanas após o fim da Copa das Confederações, receberá 2 milhões de visitantes da Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2013). O Rio foi o maior beneficiado com o aumento desse mercado nos últimos anos. Uma pesquisa da Associação Internacional de Congressos e Convenções mostra que a cidade recebeu 69 congressos e convenções, e chegou ao topo do ranking dos municípios brasileiros que mais sediaram eventos internacionais em 2011. As diferenças entre os vários tipos de acontecimentos do calendário carioca – e os desafios que eles representam para a cidade e seus habitantes – impõem uma reflexão: como uma grande cidade pode, de forma lucrativa e organizada, beneficiar-se permanentemente desse fluxo de eventos internacionais?
Especialistas ouvidos pelo site de VEJA e autoridades ligadas à organização de eventos, nas esferas pública e privada, enxergam, em todos eles, o benefício da grande visibilidade para as cidades, em especial o Rio. Mas destacam, para os próximos anos, a necessidade de uma organização minuciosa a ponto de não penalizar setores da economia e a própria população. A conclusão óbvia é de que nem todo grande evento traz benefícios – e a diferença está no planejamento.
“O turista que vem para a Copa das Confederações tem interesse pelo futebol. Há todo um mercado de publicidade e de consumo. Esse turista tem poder aquisitivo maior, vai usar mais o Rio e o gasto diário de alimentação será maior do que o de quem vem para a Jornada. O evento católico tem um público mais jovem, sem estabilidade financeira”, afirma o presidente da Rio Eventos, Leonardo Maciel, responsável por cuidar do planejamento do município para a série de competições e grandes concentrações de público que estão por vir.
A Jornada Mundial da Juventude é, no momento, o exemplo perfeito de como um acontecimento de grandes proporções – inédito até, se considerado o volume de pessoas e a quantidade de programações simultâneas – representa riscos para os organizadores. Justamente por sua sobreposição com a Copa das Confederações, a JMJ está longe de ser, para o município, um maná em termos de negócio e uso dos recursos públicos. Muito pelo contrário. Esta semana, como publicou o site de VEJA, o município assumiu uma conta inesperada – e indevida: os 7,8 milhões de reais do esquema de saúde da JMJ. O motivo é a falta de recursos no orçamento da igreja, administrado pela empresa DreamFactory, contratada para organizar o evento. Oficialmente, o município informou que assumiu o planejamento de saúde por ter maior experiência nesse tipo de gestão, o que não justifica, ainda assim, a transferência dos gastos.
A inadequação dessa transferência de responsabilidade de última hora fica evidente pela própria ordem dos acontecimentos. Em maio, reportagem do site de VEJA mostrou que um inquérito civil aberto pelo Ministério Público para acompanhar a organização apontava riscos para os fiéis, exatamente no planejamento de saúde. A DreamFactory e a igreja responderam que já haviam resolvido os problemas e que três empresas estavam sendo contratadas para esta finalidade. Agora, o plano e os custos aterrissam no orçamento do município. Novamente o MP entrou em ação, e passou a acompanhar a licitação, cuja abertura de envelopes está prevista para a próxima sexta-feira, dia 12, dez dias antes do início da JMJ. Os promotores suspeitam que este seja um prazo insuficiente para a realização de um processo que visa atender 2 milhões de pessoas. Ou que, no mínimo, esta é uma licitação incomum.
Este é, até o momento, o problema mais visível de um evento com organização complexa e impacto ainda desconhecido para os setores público e privado. Apesar do contingente envolvido, a JMJ não será, por exemplo, benéfica para o setor hoteleiro. Ou não trará aumento imediato de faturamento – pelo contrário. De acordo com Alfredo Lopes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do estado do Rio de Janeiro (ABIH-RJ), a ocupação dos quartos, no período da Jornada, será menor do que o normal. “Na Jornada, a ocupação é muito baixa, de aproximadamente 60%. Normalmente, é de 70%, mas as empresas não vão fazer eventos no Rio durante esse tempo. Ainda vale a pena porque o evento divulga a cidade”, explica.
O comércio varejista vive, no momento, uma incógnita. Se por um lado é certo que shoppings e estabelecimentos de áreas turísticas podem ter um acréscimo de movimento, a região central dá como certa a perda de faturamento em decorrência, principalmente, dos dias de feriado integral durante a jornada. A comparação usada para essa estimativa de cenário é com outro evento internacional: a Rio+20, realizada no ano passado. “Foi criada uma expectativa enorme em relação à conferência do meio ambiente, assim como a jornada, mas não houve o movimento esperado. Só veio a metade das pessoas”, explica Daniel Plá, professor de varejo da Fundação Getúlio Vargas, do Rio.
A decretação de dois dias completos de feriado e mais dois de meio expediente durante a JMJ também promete prejuízos financeiros, sobretudo, àqueles que vivem do comércio no centro. “Nesses grandes eventos, sempre há um perdedor e um ganhador”, diz Daniel, que calcula mais de 70% dos lojistas do centro terão de pegar dinheiro emprestado no banco, em julho, para honrar a folha de pagamento.
Sem contabilizar os dias de folga da JMJ, um estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) mostra que, por causa dos feriados, o Rio de Janeiro vai perder 5,2 bilhões de reais neste ano. Em todo o país, os oito feriados nacionais e os 24 estaduais que ocorrem em dias de semana causarão perdas de 42,2 bilhões de reais à indústria.
Incertezas – A Jornada Mundial da Juventude tem características que a diferenciam dos grandes eventos esportivos e das conferências com foco em negócios. E um dos detalhes de planejamento que escapa do controle dos organizadores é a hospedagem. Na Copa e na Olimpíada, tem-se uma noção clara de quantos visitantes e quanto tempo cada um deles permanece na cidade – afinal, para vir ao Rio, quase todos têm algum tipo de reserva em hotel, passagem aérea e ingresso para estádios. Na JMJ, a hospedagem é em casas de família, em sistema de voluntariado; o transporte é terrestre, em ônibus cuja quantidade as autoridades podem, no máximo, estimar; e as inscrições não servem de parâmetro para o total de visitantes.
Dentro dos órgãos públicos, fontes ouvidas pelo site de VEJA afirmam que há dificuldade em obter informações da igreja sobre os aspectos de cada fase da Jornada. Os atos secundários – ou seja, aqueles em que o papa não vai aparecer para a multidão – ainda não estão todos fechados. Isso significa que, para o gestor público, é impossível estabelecer com precisão esquemas de trânsito, segurança e estrutura para cada uma dessas etapas. Por falta do detalhamento da igreja, até o momento todo o planejamento da prefeitura para o transporte, por exemplo, foi baseado nos quatro principais compromissos do papa, na praia de Copacabana e em Guaratiba.
A oração do Ângelus pelo papa Francisco, no Palácio São Joaquim, na Glória, marcada para o mesmo dia da via-sacra, tinha sido retirada da agenda depois de uma conversa com a prefeitura. O poder municipal alegou dificuldades para planejar a limpeza e o transporte e garantir a manutenção da ordem em um evento tão próximo – em horário e em localidade – de uma das principais aglomerações da JMJ, que também terá a presença no papa, na praia de Copacabana, quando atores encenarão os momentos finais de Cristo. Tudo combinado entre a prefeitura e a Igreja para a retirada da agenda do roteiro do pontífice quando, em 7 de maio, dia do anúncio da programação, a Arquidiocese do Rio avisa que, entre o roteiro, estava o Ângelus, na Glória.
No caso da Jornada Mundial da Juventude, o município do Rio foi quem mais foi sobrecarregado até o momento. E coube aos secretários e ao prefeito Eduardo Paes impor alguns limites ao evento. A igreja queria, por exemplo, que o município arcasse com todas as despesas dos bolsões de triagem dos ônibus – alguns em outros estados. O pedido foi negado. O plano inicial da organização da JMJ era de instalar em Copacabana barraquinhas com produtos oficiais do evento ao longo de toda a orla, numa espécie de quermesse de multidão. Pedido também negado. Foi solicitado que a Guarda Municipal assumisse a vigilância do Campus Fidei, em Guaratiba – negado. E, ao Ministério da Saúde, foi solicitado o fornecimento de todas as ambulâncias para dar suporte ao evento. A pasta não aceitou, e negou a cessão de mais de 30 ambulâncias, como pretendia a igreja.
Mobilização – A cada grande evento, seja ele público ou privado, há uma adaptação necessária dos órgãos públicos. Mesmo quando há 100% de planejamento e patrocínio de empresas, não há como município, estados e governo federal não terem suas rotinas alteradas. A final da Copa das Confederações, por exemplo, impôs uma grande mobilização de tropas e equipes das polícias estaduais, federais e das Forças Armadas. Diante do risco de protestos violentos no entorno do Maracanã, o policiamento ao redor do estádio foi quase dobrado. De um total de 6.000 agentes envolvidos inicialmente, foram destacados cerca de 10.000 – entre PMs, policiais civis, policiais federais e da Força Nacional de Segurança – para áreas ao redor do estádio.
Como mostrou o site de VEJA, só o efetivo de policiais militares – 6.000 no total, destacados para o trabalho no domingo – supera o total de homens disponíveis para os batalhões da capital do estado e de Niterói, cidade vizinha.
As polícias são sempre responsáveis pela segurança em áreas públicas. E os organizadores privados devem cuidar do que acontece dentro dos limites dos congressos, shows, competições esportivas e todo tipo de grande reunião de público. Na JMJ, surgiu um impasse: a vigília comandada pelo papa Francisco ocorre em uma grande área aberta, em Guaratiba, mas em área privada – como é todo o evento de visita do pontífice. Inicialmente, a igreja tentou obter, do estado e do município, agentes para cobrir todos os 350.000 metros quadrados do ato final do evento. Não houve acordo e, por exigência do Exército, os organizadores da JMJ contrataram uma empresa de segurança para fornecer 4.000 seguranças particulares para cuidar da vigilância, num campo gigante sem controle de acesso e grandes riscos de algum tipo de manifestação – e sem chance de lançamento de bombas de efeito moral ou tiros de borracha no meio do rebanho católico.